Por Keith Mathison
Um
desenvolvimento teológico de profunda importância para nosso estudo da Idade
Média tardia é a introdução e o desenvolvimento da doutrina da infalibilidade
papal.[1]
As origens da doutrina da infalibilidade papal nos anos próximos a 1300 são uma
história fascinante, mas o escopo desta obra focará nos pontos principais. Pelo
fato de alguns traçarem as origens da doutrina da infalibilidade papal aos
canonistas, estes serão o ponto inicial.[2]
No século entre 1150 e 1250, um estudo dos escritos dos canonistas e teólogos
revela que “eles não conheciam qualquer magistério conferido a Pedro com o
poder das chaves; que eles criam que em questões de fé um concílio ecumênico
era maior que o papa; que eles não sustentavam que pronunciamentos papais eram irreformáveis
ex sese [em si mesmas]”.[3]
Como Tierney aponta, “acima de tudo, os canonistas não ensinavam que o papa era
infalível”.[4]
Ao contrário, a posição que era geralmente sustentada contrastava a fé indefectível
da Igreja com a falibilidade dos papas individuais. Os teólogos, que escreveram
bem menos sobre o assunto, também compartilhavam desse ponto de vista geral.
Em
1254 uma disputa surgiu entre os frades mendicantes e os mestres seculares na
Universidade de Paris.[5]
Tanto dominicanos quanto franciscanos estavam envolvidos, mas são os
franciscanos que requerem nossa atenção. A ordem deles havia recebido
privilégios desde 1230, e sua dependência desses privilégios provaria ser
problemática. O problema proveio de sua afirmação de que sua doutrina da
“pobreza apostólica” não era simplesmente uma boa forma de viver ou a melhor
forma de viver, mas que era um aspecto essencial da forma perfeita da vida de
Cristo transmitida aos apóstolos.[6]
Muitos deles alegavam que São Francisco havia sido o primeiro cristão a
compreender corretamente o evangelho desde os tempos dos apóstolos e que os
franciscanos eram os únicos membros da Igreja que verdadeiramente levavam vidas
cristãs.[7]
É claro que essas alegações eram altamente controversas e levantaram não pouca
oposição. Boaventura, o cabeça da ordem franciscana, respondeu aos argumentos
contra a ordem desenvolvendo uma teoria da pobreza que ele mesmo intitulou “condescendência”.
Sem entrar em todos os detalhes, é suficiente dizer que em 1279, na bula Exiit qui seminat, o Papa Nicolau III
deu sanção papal à doutrina de Boaventura e afirmou que “a forma franciscana de
vida realmente corresponde à forma da perfeição que Cristo ensinou aos
apóstolos”.[8]
O
primeiro grande cristão medieval a afirmar a doutrina da infalibilidade papal
foi Pedro de João Olivi, um franciscano altamente influente nas décadas que se
seguiram à morte de Boaventura. Ele viveu e escreveu num período de tempo em
que os franciscanos estavam divididos em dois grandes campos: a maior e menos
rigorosa “Comunidade” e os rigorosos “espirituais”. O próprio Olivi foi um proeminente
porta-voz dos espirituais.[9]
A razão pela qual Olivi, ao contrário de Boaventura, desenvolveu a doutrina da
infalibilidade papal, diferente de seu antecessor, foi seu medo constante da
possibilidade de que um futuro pseudo-papa buscasse derrubar a fé verdadeira
(i.e., a forma de vida franciscana). Na mente de Olivi, era necessário que os
decretos dos papas (tais como Nicolau III) “fossem considerados como não apenas
autoritativos para o presente, mas imutáveis, irreformáveis por todos os
tempos”.[10]
Isso, no entanto, era impossível dentro do quadro da doutrina da soberania
papal dos canonistas. Eles entendiam que uma doutrina de infalibilidade limitaria
a soberania de um papa individual. Olivi sabia muito disso. Sua “nova teoria da
infalibilidade papal foi designada para limitar o poder dos papas futuros, não
para libertá-los de qualquer restrição”.[11]
A
nova doutrina de Olivi foi ignorada por quarenta anos, mas em 1322 o Papa João
XXII revogou as provisões pró-franciscanas da Exiit e emitiu uma nova declaração sobre a doutrina da pobreza de
Cristo.[12]
Os franciscanos ficaram consternados e reagiram emitindo duas cartas encíclicas
defendendo sua doutrina. O Papa João respondeu no fim de 1322 na bula Ad conditorem. Para João, “a ideia de
que quaisquer decisões devessem ser incorrigíveis apresentava-se...
simplesmente com uma ameaça a sua própria autoridade soberana”.[13]
Essa bula provocou uma resposta apaixonada da parte dos franciscanos que apelaram
contra ela ao próprio papa. Em novembro de 1323, o Papa João XXII emitiu seu julgamento
final sobre a questão da pobreza de Cristo na bula Cum inter nonnulos. A bula refere-se à visão de que “Jesus Cristo e
seus apóstolos não tiveram nada isoladamente ou em comum” como errônea e
herética.[14]
Pelo fato dessa bula explicitamente contradizer a antiga bula Exiit, os franciscanos começaram a
asseverar a incorrigibilidade da primeira ao ponto de condenarem a visão de
João como herética. Como Tierney nota,
A primeira
condenação evidente de uma bula papal veio de... um grupo de dissidentes
franciscanos que encontraram refúgio na corte do imperador excomungado Luís IV
da Baviera. O protesto deles, incluído como um tipo de digressão no Apelo de
Sachenhausen do Imperador em 24 de maio de 1324, não apenas defendia a doutrina
da pobreza evangélica e denunciava João XXII como um herege por atacar a
doutrina, mas também apresentava uma nova formulação da teoria da
infalibilidade papal. Nesta obra, pela primeira vez, o antigo ensinamento de
que uma das chaves que tinha sido entregue a Padro era a “chave do conhecimento”
foi usado para apoiar a doutrina de que o papa era infalível quando usava essa
chave para definir verdades sobre a fé e a moral. Foi um grande avanço
teológico.[15]
O
Apelo de Sachenhausen trouxe a discussão para o domínio do pensamento católico
pela primeira vez.
Em
novembro de 1324, João XXII respondeu na bula Quia quorundam que o “Pai da mentira” tem levado seus [do Papa] inimigos a defender a tese errônea de que “o que Pontífice Romano uma vez defina em questões
de fé e moral com a chave do conhecimento seja tão imutável que não permita que
um sucessor a revogue”.[16]
Os intercâmbios de
1324 são de interesse fascinante para um historiador da doutrina da
infalibilidade papal. Aqui, pela primeira vez, uma doutrina da infalibilidade
papal baseada sobre o poder petrino das chaves foi manifestamente proposta. Mas
a doutrina teve por pai antipapas rebeldes e não teólogos da Cúria. E, longe de
abraçar a doutrina, o Papa indignadamente a denunciou como uma invenção
perniciosa.[17]
O
mais impressionante sobre a doutrina da infalibilidade papal é que ela “foi
inventada quase que fortuitamente por causa de uma concentração histórica de
circunstâncias não usuais que fizeram surgir uma doutrina útil para um grupo
particular de contendedores”.[18]
Não há evidência
convincente de que a infalibilidade papal tenha constituído qualquer parte da
tradição teológica ou canônica da Igreja antes do século XIII; a doutrina foi
criada em primeiro lugar por uns poucos dissidentes franciscanos porque lhes
era adequado e conveniente inventá-la; eventualmente, mas não somente após
muita relutância, foi aceita pelo papado porque ela se adequava a conveniência
dos papas em aceitá-la.[19]
A
doutrina católica da infalibilidade papal não foi declarada como dogma oficial
católico até o primeiro Concílio do Vaticano em 1870, mas sua origem pode ser
traçada a essa obscura batalha do século XIII entre franciscanos radicais e o
papado.
Extraído do livro The Shape of Sola Scriptura de Keith A. Mathison, pp. 58-61
[1] Para um excelente estudo histórico
desta questão, veja Brian Tierney, Origins
of Papal Infallibity: 1150-1350, (Leiden: E.J. Brill, 1988).
[2] Canonistas ou advogados canônicos
eram aqueles que estudavam e sistematizavam as leis canônicas – regras da
igreja estabelecidas para propósitos práticos de ordem e disciplina. Muito
frequentemente os cânons de ordem e disciplina eram estabelecidos em concílios
(tais como Nicéia em 325 d.C.). Mas a coleção e padronização da lei canônica
alcançou seu ponto máximo na obra de Graciano, cujo decretum foi o livro-texto padrão por toda a Idade Média tardia.
[3] Tierney, op. cit., 57.
[4] Ibid.
[5] Um “mendicante” é alguém que
depende de esmolas para viver
[6] Cf. Latourette, op. cit.,
I:429-436.
[7] Tierney, op. cit., 67-72.
[8] Ibid., 59-70.
[9] Ibid., 93-101.
[10]
Ibid., 125.
[11] Ibid., 130.
[12] La Due, op. cit., 146-147.
[13] Tierney, op. cit., 178-179.
[14] Citado em Tierney, op.cit., 178-179.
[15] Ibid., 182.
[16] Citado em Tierney, op. cit., 186.
[17] Ibid., 187-188.
[18] Ibid., 274.
[19] Ibid., 281.
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