sexta-feira, 28 de agosto de 2015

A DOUTRINA DA INFALIBILIDADE PAPAL (ORIGENS)

Por Keith Mathison


Um desenvolvimento teológico de profunda importância para nosso estudo da Idade Média tardia é a introdução e o desenvolvimento da doutrina da infalibilidade papal.[1] As origens da doutrina da infalibilidade papal nos anos próximos a 1300 são uma história fascinante, mas o escopo desta obra focará nos pontos principais. Pelo fato de alguns traçarem as origens da doutrina da infalibilidade papal aos canonistas, estes serão o ponto inicial.[2] No século entre 1150 e 1250, um estudo dos escritos dos canonistas e teólogos revela que “eles não conheciam qualquer magistério conferido a Pedro com o poder das chaves; que eles criam que em questões de fé um concílio ecumênico era maior que o papa; que eles não sustentavam que pronunciamentos papais eram irreformáveis ex sese [em si mesmas].[3] Como Tierney aponta, “acima de tudo, os canonistas não ensinavam que o papa era infalível”.[4] Ao contrário, a posição que era geralmente sustentada contrastava a fé indefectível da Igreja com a falibilidade dos papas individuais. Os teólogos, que escreveram bem menos sobre o assunto, também compartilhavam desse ponto de vista geral.
Em 1254 uma disputa surgiu entre os frades mendicantes e os mestres seculares na Universidade de Paris.[5] Tanto dominicanos quanto franciscanos estavam envolvidos, mas são os franciscanos que requerem nossa atenção. A ordem deles havia recebido privilégios desde 1230, e sua dependência desses privilégios provaria ser problemática. O problema proveio de sua afirmação de que sua doutrina da “pobreza apostólica” não era simplesmente uma boa forma de viver ou a melhor forma de viver, mas que era um aspecto essencial da forma perfeita da vida de Cristo transmitida aos apóstolos.[6] Muitos deles alegavam que São Francisco havia sido o primeiro cristão a compreender corretamente o evangelho desde os tempos dos apóstolos e que os franciscanos eram os únicos membros da Igreja que verdadeiramente levavam vidas cristãs.[7] É claro que essas alegações eram altamente controversas e levantaram não pouca oposição. Boaventura, o cabeça da ordem franciscana, respondeu aos argumentos contra a ordem desenvolvendo uma teoria da pobreza que ele mesmo intitulou “condescendência”. Sem entrar em todos os detalhes, é suficiente dizer que em 1279, na bula Exiit qui seminat, o Papa Nicolau III deu sanção papal à doutrina de Boaventura e afirmou que “a forma franciscana de vida realmente corresponde à forma da perfeição que Cristo ensinou aos apóstolos”.[8]
O primeiro grande cristão medieval a afirmar a doutrina da infalibilidade papal foi Pedro de João Olivi, um franciscano altamente influente nas décadas que se seguiram à morte de Boaventura. Ele viveu e escreveu num período de tempo em que os franciscanos estavam divididos em dois grandes campos: a maior e menos rigorosa “Comunidade” e os rigorosos “espirituais”. O próprio Olivi foi um proeminente porta-voz dos espirituais.[9] A razão pela qual Olivi, ao contrário de Boaventura, desenvolveu a doutrina da infalibilidade papal, diferente de seu antecessor, foi seu medo constante da possibilidade de que um futuro pseudo-papa buscasse derrubar a fé verdadeira (i.e., a forma de vida franciscana). Na mente de Olivi, era necessário que os decretos dos papas (tais como Nicolau III) “fossem considerados como não apenas autoritativos para o presente, mas imutáveis, irreformáveis por todos os tempos”.[10] Isso, no entanto, era impossível dentro do quadro da doutrina da soberania papal dos canonistas. Eles entendiam que uma doutrina de infalibilidade limitaria a soberania de um papa individual. Olivi sabia muito disso. Sua “nova teoria da infalibilidade papal foi designada para limitar o poder dos papas futuros, não para libertá-los de qualquer restrição”.[11]
A nova doutrina de Olivi foi ignorada por quarenta anos, mas em 1322 o Papa João XXII revogou as provisões pró-franciscanas da Exiit e emitiu uma nova declaração sobre a doutrina da pobreza de Cristo.[12] Os franciscanos ficaram consternados e reagiram emitindo duas cartas encíclicas defendendo sua doutrina. O Papa João respondeu no fim de 1322 na bula Ad conditorem. Para João, “a ideia de que quaisquer decisões devessem ser incorrigíveis apresentava-se... simplesmente com uma ameaça a sua própria autoridade soberana”.[13] Essa bula provocou uma resposta apaixonada da parte dos franciscanos que apelaram contra ela ao próprio papa. Em novembro de 1323, o Papa João XXII emitiu seu julgamento final sobre a questão da pobreza de Cristo na bula Cum inter nonnulos. A bula refere-se à visão de que “Jesus Cristo e seus apóstolos não tiveram nada isoladamente ou em comum” como errônea e herética.[14] Pelo fato dessa bula explicitamente contradizer a antiga bula Exiit, os franciscanos começaram a asseverar a incorrigibilidade da primeira ao ponto de condenarem a visão de João como herética. Como Tierney nota,

A primeira condenação evidente de uma bula papal veio de... um grupo de dissidentes franciscanos que encontraram refúgio na corte do imperador excomungado Luís IV da Baviera. O protesto deles, incluído como um tipo de digressão no Apelo de Sachenhausen do Imperador em 24 de maio de 1324, não apenas defendia a doutrina da pobreza evangélica e denunciava João XXII como um herege por atacar a doutrina, mas também apresentava uma nova formulação da teoria da infalibilidade papal. Nesta obra, pela primeira vez, o antigo ensinamento de que uma das chaves que tinha sido entregue a Padro era a “chave do conhecimento” foi usado para apoiar a doutrina de que o papa era infalível quando usava essa chave para definir verdades sobre a fé e a moral. Foi um grande avanço teológico.[15]

O Apelo de Sachenhausen trouxe a discussão para o domínio do pensamento católico pela primeira vez.
Em novembro de 1324, João XXII respondeu na bula Quia quorundam que o “Pai da mentira” tem levado seus [do Papa] inimigos a defender a tese errônea de que “o que Pontífice Romano uma vez defina em questões de fé e moral com a chave do conhecimento seja tão imutável que não permita que um sucessor a revogue”.[16]

Os intercâmbios de 1324 são de interesse fascinante para um historiador da doutrina da infalibilidade papal. Aqui, pela primeira vez, uma doutrina da infalibilidade papal baseada sobre o poder petrino das chaves foi manifestamente proposta. Mas a doutrina teve por pai antipapas rebeldes e não teólogos da Cúria. E, longe de abraçar a doutrina, o Papa indignadamente a denunciou como uma invenção perniciosa.[17]

O mais impressionante sobre a doutrina da infalibilidade papal é que ela “foi inventada quase que fortuitamente por causa de uma concentração histórica de circunstâncias não usuais que fizeram surgir uma doutrina útil para um grupo particular de contendedores”.[18]

Não há evidência convincente de que a infalibilidade papal tenha constituído qualquer parte da tradição teológica ou canônica da Igreja antes do século XIII; a doutrina foi criada em primeiro lugar por uns poucos dissidentes franciscanos porque lhes era adequado e conveniente inventá-la; eventualmente, mas não somente após muita relutância, foi aceita pelo papado porque ela se adequava a conveniência dos papas em aceitá-la.[19]

A doutrina católica da infalibilidade papal não foi declarada como dogma oficial católico até o primeiro Concílio do Vaticano em 1870, mas sua origem pode ser traçada a essa obscura batalha do século XIII entre franciscanos radicais e o papado.

Extraído do livro The Shape of Sola Scriptura de Keith A. Mathison, pp. 58-61
Tradução Livre: Fabiano Raposo




[1] Para um excelente estudo histórico desta questão, veja Brian Tierney, Origins of Papal Infallibity: 1150-1350, (Leiden: E.J. Brill, 1988).
[2] Canonistas ou advogados canônicos eram aqueles que estudavam e sistematizavam as leis canônicas – regras da igreja estabelecidas para propósitos práticos de ordem e disciplina. Muito frequentemente os cânons de ordem e disciplina eram estabelecidos em concílios (tais como Nicéia em 325 d.C.). Mas a coleção e padronização da lei canônica alcançou seu ponto máximo na obra de Graciano, cujo decretum foi o livro-texto padrão por toda a Idade Média tardia.
[3] Tierney, op. cit., 57.
[4] Ibid.
[5] Um “mendicante” é alguém que depende de esmolas para viver
[6] Cf. Latourette, op. cit., I:429-436.
[7] Tierney, op. cit., 67-72.
[8] Ibid., 59-70.
[9] Ibid., 93-101.
[10] Ibid., 125.
[11] Ibid., 130.
[12] La Due, op. cit., 146-147.
[13] Tierney, op. cit., 178-179.
[14] Citado em Tierney, op.cit., 178-179.
[15] Ibid., 182.
[16] Citado em Tierney, op. cit., 186.
[17] Ibid., 187-188.
[18] Ibid., 274.
[19] Ibid., 281.

Nenhum comentário:

Postar um comentário